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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Novembro-Dezembro 2014 - Volume 2  - Número 6


Editorial

Anafilaxia e uso de adrenalina

Anaphylaxis and the use of adrenaline

Elaine Gagete Miranda da Silva


MD, PhD. Clínica Dra. Elaine Gagete Miranda da Silva, Botucatu, SP




O termo anafilaxia foi cunhado por Charles Robert Richet e Paul Portier em 1902, após observarem reaçoes paradoxais em caes que recebiam repetidas administraçoes de toxinas de anêmonas1, mas foi somente após a descoberta do papel dos mastócitos2 e da IgE3 que os mecanismos da anafilaxia começaram a ser compreendidos.

Sabe-se atualmente que anafilaxia é uma reaçao sistêmica grave, aguda e potenciamente fatal, desencadeada por mecanismos de hipersensibilidade4 cujo diagnóstico é essencialmente clínico e baseado nas diretrizes mostradas na Figura 1, de tal forma que, quando o paciente apresentar uma das três situaçoes descritas, há grande probabilidade de o diagnóstico ser anafilaxia5.

A adrenalina é a pedra angular no tratamento da anafilaxia, e seu uso deve ser o mais rápido possível. Sabe-se que o retardo aumenta a chance de morte e/ou evoluçao para anafilaxia bifásica ou protraída, onde o risco de fatalidade é maior5. Mesmo pacientes que ainda nao apresentaram todos os sintomas compatíveis com os critérios acima podem receber adrenalina quando a história apontar risco de evoluçao para um quadro mais grave. É o que ocorre, por exemplo, em pacientes que apresentam urticária rápida e extensa após ingestao de alimento sabidamente causador de alergia e com episódio de anafilaxia prévia por este desencadeante. Por outro lado, o uso de adrenalina nao é recomendado em pacientes que apresentam apenas urticária e/ou angioedema quando tal doença é crônica e evoluiu para uma exacerbaçao, a nao ser que apresente sintomas sistêmicos que já possam ser caracterizados como anafilaxia de fato6.

Atualmente, todos os consensos sao unânimes em recomendar a adrenalina como primeira droga em situaçoes de anafilaxia. Nada justifica o atraso do uso desse importante medicamento em uma doença tao grave. Na evoluçao da crise anafilática, comprometimento respiratório e/ou cardiovascular pode culminar em choque refratário e parada cardiorrespiratória dentro de 10 a 15 minutos, especialmente em anafilaxia causada por drogas e por insetos, mas qualquer outro desencadeante pode ter tal evoluçao drástica. O correspondente a 35% da volemia pode ser perdido para o espaço extravascular em apenas 10 minutos7. Pacientes com doenças de base, como asma, cardiopatias, mastocitose, usuários de medicaçoes inibidoras de ECA ou betabloqueadores sao especialmente de risco. Ingestao de álcool, AINEs, viroses, período menstrual, uso de antiácidos, aumento da temperatura corporal e atividade física podem potencializar ou desencadear anafilaxia em pacientes susceptíveis8.

Mecanismos de compensaçao intrínseca (adrenalina e outras catecolaminas endógenas, angiotensina II, endotelina I, etc.) podem ser salvadores nesse tipo de emergência, modulando sua intensidade e muitas vezes sendo suficientes para tirar o paciente da crise mesmo sem medicaçao exógena6. Entretanto, nao há como prever, em casos particulares, se tais mecanismos serao ou nao suficientes, e retardar o uso de adrenalina pode fazer a diferença entre viver ou nao após uma crise de anafilaxia.

A adrenalina - também chamada de epinefrina - é uma das principais catecolaminas produzidas pela adrenal, e em situaçoes de estresse agudo, onde há ameaça para o organismo, ela é liberada na corrente sanguínea indo agir em todos os órgaos que recebem inervaçao simpatomimética. Aumenta a frequência cardíaca e a força contrátil do miocárdio. Seu efeito alfa-adrenérgico estimula a vasoconstricçao, fazendo a pressao arterial se elevar e diminuindo o edema de mucosas. O fluxo sanguíneo é redistribuído da pele e tecido celular subcutâneo para a musculatura esquelética, circulaçao esplênica e cérebro. Brônquios dilatamse pelo efeito beta-adrenérgico, com o consequente aumento da taxa de oxigenaçao sanguínea. Isso tudo faz dessa importante catecolamina a principal substância a preparar o organismo para "fuga ou luta". No início do século XX a adrenalina começou a ser sintetizada para uso em humanos, inicialmente para tratamento de asma. A partir de 1960, a comunidade científica reconhece sua utilidade para casos de anafilaxia, e na década de 80 os primeiros autoinjetores de adrenalina passam a ser disponíveis comercialmente9.

Recentemente, outro mecanismo foi proposto para explicar a atuaçao da adrenalina em casos de anafilaxia. Como se sabe, o PAF (fator de ativaçao plaquetária) é um dos principais mediadores liberados durante a ativaçao de mastócitos e basófilos. Seu efeito biológico inclui aumento da permeabilidade vascular, diminuiçao do débito cardíaco, colapso circulatório, contraçao de músculo liso como do intestino, útero e brônquios. Além disso, o PAF potencializa a açao de outros mediadores mastocitários. Tudo isso faz com que tal substância, cuja açao ocorre através de receptores em várias células do organismo, seja a maior responsável por casos de anafilaxia grave e protraída. Expressao dos receptores de PAF sao regulados pelo nível de cAMP intracelular de forma que quanto mais cAMP, menos receptores de PAF e menos mRNA para a síntese desses receptores. Sendo a adrenalina droga adrenérgica beta-agonista cuja açao farmacológica inclui aumento dos níveis de cAMP intracelular, é fácil entender como esta catecolamina reduz os níveis de PAF. Isso explica também o pior prognóstico nos casos onde há retardo no uso de adrenalina, já que as açoes do PAF encontram-se em curso e, por isso, a downregulation nao é tao efetiva10.

O local e a via da injeçao de adrenalina também já foram estabelecidos de forma a nao deixar dúvidas. A medicaçao deve se feita por via intramuscular, no músculo vastolateral da coxa, como ficou bem demonstrado no estudo de Simons et al.11, que demonstraram que a concentraçao sérica de adrenalina é consideravelmente maior por esta via, neste local. A dose padronizada para crianças é 0,01 mg/kg (máximo 0,3 mg), e para adultos 0,2 a 0,5 mg (também dependendo do peso) de adrenalina milesimal (1 mg em 1mL de diluente). Essa dose pode ser repetida a cada 5-15 minutos, se necessário, dependendo da gravidade do quadro e da resposta do paciente6.

Apesar de todos os benefícios, a adrenalina nao é isenta de riscos, já que possui uma janela terapêutica estreita, ou seja, a dose efetiva e benéfica é próxima da dose tóxica e mesmo letal. Ainda que em doses corretas, o paciente pode apresentar agitaçao, ansiedade, tremores, tontura, palidez e palpitaçoes. Se dada por via endovenosa de forma rápida, ou mesmo por via intramuscular numa dose excessiva, pode ocasionar isquemia miocárdica, infarto, edema pulmonar, arritmias ventriculares, hipertensao arterial grave e hemorragia intracraniana6.

Outro ponto importante é a interaçao da adrenalina com certas drogas comumente utilizadas na prática clínica. Alguns desses medicamentos podem interagir com a adrenalina, diminuindo sua eficácia (como os bloqueadores beta-adrenérgicos), concorrer com seu efeito compensatório à hipotensao (inibidores de ECA e bloqueadores de receptor de angiotensina II), dificultar a metabolizaçao da adrenalina, o que pode levar ao aumento da concentraçao sérica acima de níveis terapêuticos (antidepressivos tricíclicos e inibidores da MAO) ou facilitar sua toxicidade através do aumento da sensibilizaçao miocárdica (cocaína e anfetamina)6.

Uma situaçao considerada dramática na prática clínica sao os pacientes coronariopatas, especialmente os mais idosos, que desenvolvem anafilaxia. Nesses casos, a crise pode ser devastadora num miocárdio já danificado cronicamente por doença isquêmica. Num estudo restrospectivo em que foram analisados 25 pacientes com anafilaxia fatal cuja média de idade foi 59 anos, 19 dos 23 pacientes autopsiados apresentavam coronariopatia isquêmica12. As mortes associadas à anafilaxia nos cardiopatas podem ser independentes do uso de adrenalina. Mastócitos estao presentes na íntima das coronárias e, principalmente se o paciente já apresenta doença aterosclerótica, infarto agudo do miocárdio pode seguir-se à crise de anafilaxia, situaçao essa conhecida como síndrome de Kounis. Esse infarto de natureza alérgica pode ocorrer, inclusive, em pessoas sem doença coronariana isquêmica prévia, e até mesmo em crianças13.

Apesar dos possíveis efeitos colaterais, o risco de nao se utilizar a adrenalina de forma adequada quando bem indicada supera em muito o risco das complicaçoes do uso. Mesmo nos portadores de cardiopatias e idosos, a relaçao risco/benefício aponta para a utilizaçao conscienciosa da droga, já que nao existe nada em substituiçao a mesma. Ou seja, nao existe nenhuma contraindicaçao absoluta ao uso de adrenalina na anafilaxia, e, apesar da dificuldade que se apresenta em utilizá-la nos pacientes cardiopatas, o risco da nao utilizaçao de forma adequada, quiçá na dose mínima, deve ser pesado frente ao dano acarretado pelo desenvolvimento de anafilaxia mais grave, com comprometimento do próprio coraçao e de vários outros órgaos-alvo. Todos os guidelines existentes atualmente definem claramente a adrenalina como droga de primeira linha no tratamento de anafilaxia para qualquer tipo de paciente. Os anti-histamínicos anti-H1 aliviam o prurido e a urticária; os anti-H2 podem potencializar os efeitos dos anti-H1, dando alívio adicional à urticária; corticoides podem prevenir anafilaxia bifásica e protraída; drogas beta-adrenérgicas seletivas, como salbutamol, têm importante efeito broncodilatador. Entretanto, nenhum desses medicamentos deve ser utilizado como primeira linha, já que nao possuem efeito alfa-agonista que promova vasoconstricçao, evitando, assim, o desencadeamento de choque e de obstruçao aérea alta por edema de laringe. Desta forma, nao há dúvida quanto ao uso correto de adrenalina como droga de primeira escolha, utilizada o mais rápido possível, para se evitar a morte em pacientes com anafilaxia13.

Desta forma, a disponibilidade de portar sua própria adrenalina de forma a utilizá-la logo aos primeiros sintomas da doença é fundamental para o paciente. Infelizmente essa condiçao ainda nao foi alcançada para os brasileiros portadores de anafilaxia, já que nao há presentemente no Brasil o registro de adrenalina autoinjetável. A melhor opçao é de se importar a droga a preços muito acima da realidade para a maioria da populaçao. A alternativa de se oferecer uma ampola da medicaçao ao paciente e ensiná-lo a utilizar em caso de necessidade é totalmente descabida. Como vimos, a adrenalina nao é isenta de riscos e permitir que o paciente ou seu familiar mais próximo prepare a medicaçao injetável - com toda a técnica necessária desde a quebra da ampola, aspiraçao da dose adequada e aplicaçao intramuscular - e tudo isso numa situaçao de grande estresse, é algo inconcebível. Outra opçao, que pode ser utilizada por pouco tempo, até que o paciente compre sua própria adrenalina autoinjetável, é fornecer-lhe seringas preenchidas com a medicaçao já na dose correta. Sabe-se que desde que bem acondicionada, ao abrigo do calor e da luz, e com cuidados de assepsia para evitar contaminaçao, a estabilidade do produto perdura por aproximadamente 3 meses14. Evidentemente, nao é uma opçao simples para toda populaçao que, em áreas remotas do país, nao possui sequer energia elétrica e geladeira para acondicionar a seringa. E trocar a mesma trimestralmente também nao é uma soluçao trivial para a grande parcela dos pacientes que tem somente o Sistema Unico de Saúde (SUS) como recurso para tratamento.

Pelo exposto, a adrenalina autoinjetável é de longe a opçao mais adequada. Existem vários modelos no mercado, e os mais conhecidos utilizam doses de 0,15 mg de adrenalina na apresentaçao infantil, e 0,30 mg na de adulto. Os pacientes devem ser treinados por profissionais capacitados a como utilizar os dispositivos. Para isso, os próprios fabricantes disponibilizam aparelhos sem agulhas ou medicaçao e a cada consulta o médico pode orientar o paciente relembrando-lhe as indicaçoes e o uso correto. Para a grande maioria das pessoas o passo a passo na utilizaçao do dispositivo é muito simples; entretanto, a orientaçao a cada consulta médica é essencial, já que se nao for bem utilizado, o autoinjetor pode ser disparado antes que a agulha atinja o músculo, o que causa perda da medicaçao e risco de ferimento com a agulha na pessoa que está aplicando.

Outros problemas que já foram levantados com uso de autoinjetores sao o tamanho da agulha, que pode nao ser suficiente para alcançar o músculo em pacientes obesos, e a dose fixa que pode dar sub ou superdosagem dependendo do peso, especialmente na faixa pediátrica15. Apesar disso, para a grande maioria dos pacientes com anafilaxia, os autoinjetores sao a opçao mais segura e eficaz, e seu porte cotidiano deve ser estimulado por todos que estao sob risco de apresentar novos episódios da doença.

Estudos com adrenalina sublingual estao sendo desenvolvidos, e, futuramente, esta poderá ser uma opçao mais prática e acessível16.

Pelo exposto, fica claro que a adrenalina é essencial para o tratamento da anafilaxia, e todos os médicos devem ser adequadamente treinados para reconhecer e tratar corretamente essa emergência médica. Cabe aos alergistas a orientaçao e o esforço para que todos os portadores desse grave problema tenham acesso e usem corretamente os autoinjetores que até aqui sao a única opçao para se evitar uma possível evoluçao fatal.

 

REFERENCIAS

1. Portier MM, Richet C. De l'action anaphylactiquede certains venims. Comptes Rendus des Seances Mem Soc Biol.1902;54:170-2.

2. Mota I. The Mechanism of Anaphylaxis. Immunology. 1964;7:681-99.

3. Stanworth DR. The discovery of IgE. Allergy. 1993;48:67-71.

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5. Sampson HA, Munoz-Furlong A, Campbell RL, Adkinson Jr NF, Bock SA, Branum A, et al. Second Symposium on the Definition and Management of Anaphylaxis: Summary Report - Second National Institute of Allergy and Infectious Disease/Food Allergy and Anaphylaxis Network Symposium. Ann Emerg Med. 2006;47:373-80.

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15. Frew AJ. What are the 'ideal' features of an adrenaline (epinephrine) auto-injector in the treatment of anaphylaxis? Allergy. 2011;66:15-24.

16. Rachid O, Rawas-Qalaji MM, Simons FE, Simons KJ. Epinephrine (adrenaline) absorption from new-generation, taste-masked sublingual tablets: a preclinical study. J Allergy Clin Immunol. 2013;131:236-8.

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